Um dos fatores que contribuíram para que a América do Sul tivesse uma fauna bem característica foi o isolamento sofrido por este continente. Não existiu conexão terrestre entre as Américas por cerca de 70 milhões de anos, e as ligações com a Antártida cessaram há cerca de 50 milhões de anos ou mais. Graças a isso a fauna sul-americana evoluiu no isolamento, e se nos concentramos no caso específico dos mamíferos este endemismo "forçado" gerou uma série de grupos peculiares, como os tatus, preguiças, tamanduás, mamíferos ungulados extintos, e marsupiais didelfimorfos (gambás). Há cerca de 31 milhões de anos atrás, os ancestrais dos símios platirrinos (saguis e micos) e roedores caviomorfos (paca, capivara, cutia, porquinho-da-índia, ouriço-caixeiro, ratão-do-banhado, chinchila) chegaram vindos da África Ocidental, atravessando o Atlântico de uma forma ainda inexplicada. A estes dois estratos juntaram-se, quase 30 milhões de anos depois, os procionídeos, família que inclui os quatis e guaxinins, ditos "saltadores-de-ilhas", porque parecem ter atravessado as ilhas do Caribe antes que o istmo centro-americano se formasse. Apenas por volta de 3 milhões de anos atrás, o Istmo do Panamá consolidou-se com uma ponte terrestre, ligando as faunas do Norte e do Sul das Américas. Graças a esta ponte é que chegaram à América do Sul os estratos mais recentes de sua fauna, ou seja, ruminantes, lhamas, porcos, mastodontes, cães, gatos, ursos, furões, lontras, antas, e diversos roedores setentrionais, como os ratos e esquilos. Normalmente é considerado que a migração de grupos mais "modernos" contribui para a extinção de muitos dos grupos autóctones sul-americanos, ainda que muitos destes tenha migrado para o Norte e lá se estabelecido, como os gambás, preguiças-gigantes e tatus, dentre outros. A interpretação usual é de que a competição levou à extinção de boa parte da diversidade original do Sul, que incluía uma série de ungulados característicos, muitos com desenvolvimentos evolutivos de uma paralelismo impressionante em relação a seus "rivais" do Norte. As ordens extintas do Litopternos e Notoungulados possuíam integrantes semelhantes a coelhos, cavalos, camelos, rinocerontes e hipopótamos, dentre outros. O grupo dos Esparassodontes, marsupiais carnívoros que se assemelhavam a gatos e cães, e chegaram até mesmo a produzir uma versão marsupial dos gatos-dente-de-sabre, extinguiram-se logo após o Grande Intercâmbio Americano (GReat American Interchange), como ficou conhecido este evento biogeográfico.
A Biologia Especulativa consiste em especular cenários alternativos à Evolução "normal" que ocorreu no nosso planeta, criando "mundos paralelos" caracterizados caminhos diferentes dos ocorridos na realidade. Podemos partir de uma simples pergunta:
COMO SERIA A FAUNA SUL-AMERICANA SE O GRANDE INTERCÂMBIO JAMAIS TIVESSE OCORRIDO?
Para começar a nossa especulação, parto do princípio, que jamais houve proximidade entre as Américas: vamos supor que a América do Sul continuou constituindo uma imensa massa de terra isolada, que batizarei de Ilha de Vera Crux, em referência ao primeiro nome dado pelos portugueses ao Brasil. Neste universo alternativo, roedores e primatas chegaram ao continente, vindos da África, mas após isso não houve novos intercâmbios faunísticos: nem os saltadores-de-ilha do Caribe, nem os invasores nórdicos aqui chegaram. Como ficaria e desenvolveria a fauna nativa?
MARSUPIAIS
Os Esparassodontes continuaram sendo os únicos mamíferos carnívoros de Vera Crux, durante Mioceno produziram formas vagamente felinas como os Borrienídeos (Borhyaenidae), e o insólitos dente-de-sabres Tilacosmilídeos (Thylacosmilidae). A única competição como predadores vinha das fantásticas aves corredoras Forusraciformes, algumas com tamanhos gigantescos, e dos crocodilos zifodontes Sebecídeos (Sebecidae), que eram mais adaptados à vida na terra firme que os crocodilos e jacarés atuais.
No Nosso Mundo, todos os três grupos entraram em declínio após a chegada dos mamíferos da ordem dos Carnívoros, mas em Vera Crux, eles podem ter persistido. Os Forusraciformes continuaram dominando os terrenos mais abertos, espalham-se pelos campos, cerrados e caatingas, como os carnívoros mais velozes. Na Amazônia, onde a vegetação densa dificultaria a locomoção, predominam os neoborrienídeos felinos, dentre as quais a onça-marsupial Thylaconca jaguara, e o urso-marsupial Perarctos amazonicus. Os tilacosmilídeos persistiram até o Plistoceno, mas se extinguiram (como os gatos dentes-de-sabre em Nosso Mundo) com o fim da Megafauna. Com mais nichos ecológicos a serem preenchidos, os gambás sofreram uma grande irradiação adaptativa pós-Miocênica, originando pequenos carnívoros semelhantes a texugos e carcajus, os Trochodelphyidae como o Trochodelphys ferox, o Diabo-da-Patagônia (Sarcophiloides patagonicus) e o Diabo-da-Amazônia (Sarcophiloides amazonicus) , e o chacal-marsupial (Thylacothous necrophagus), e carnívoros aquáticos como as lontras-marsupiais Peralutra aquatilis, Thylacohydra brasiliensis, e Pteronuroides maximus. O nicho dos guaxinims e quatis também foi ocupado pelos gambás, como o jupará-marsupial Dendrothylax arboreus, e o guaxinim-marsupial Peraprocyon omnivorus, enquanto que o papel dos gatos-do-mato e iraras ficou ocupado por Esparassodontes hatliacinídeos, como a irara-marsupial Pseudomartes hylaea e a jaguatirica-marsupial Thylacailurus pardellus.Outro grupo de gambás imitou os cangambás, aperfeiçoando suas glândulas fétidas, o cangambá-gigante (Pseudomephitis plattina) e seu parente dos pampas (Pseudomephitis cana).
XENARTROS
Tamanduás, tatus e preguiças persistiram, como no Nosso Mundo, mas os gliptodontes e preguiças-gigantes, abundantes até o Plistoceno, padeceram da mesma extinção que acometeu a Megafauna sul-americana.Os tamanduaís, entretanto, evoluíram para diversas formas correpondentes aos esquilos, os Microtamanduidae.
UNGULADOS PRIMITIVOS
Sem a competição com os invasores do Norte, os diversos grupos de ungulados continuaram a se diversificar, ainda que muitos tenham sofrido com a extinção plistocênica que dizimou alguns de seus maiores integrantes. Sem a competição dos cavalos genuínos, os pseudo-cavalos da família dos Proteroterídeos persistiram e constituem parte importante da fauna campestre. O Pseudocavalo (Pseudocaballus autochthon) habita boa parte da América do Sul, e conta com a companhia dos Macrauquenídeos que não tiveram que confrontar-se com os camelos e cervos do Nosso Mundo. Graças isso, formas cursoriais desenvolveram-se livremente, chegando a forma de pescoço mais comprido como a Pseudogirafa (Pseudogiraffa macrauchenidea), e os Pseudocamelos (Pseudocamelus agrestis) da região Nordeste, parentes próximos das pseudolhamas andinas (P. andinus). No entanto, os nichos de animais herbívoros foram também ocupados pelos roedores gigantes, que são citados mais abaixo. Um subgrupo dos Proteroterídeos, o dos Megadolodíneos onívoros, desenvolveu adaptações mais onívoras e ocupou parte dos nichos ecológicos dos porcos-do-mato, levando ao pseudocateto (Tayassumimus robustus), e ao porco-dos-canaviais (Ailuropodochoerus cannivorus), semelhante aos pandas. Ocupando as áreas mais frias da Patagônia, deram origem aos porcos-ursinos (Arctochoerus megadolodus) e porcos-glaciais (Ovibovaster patagonicus).
Os Notoungulados tipotérios mantiveram-se como substitutos naturais do coelhos e lebre, e seu mais conhecido em Vera Crux é o Tapitirana (Pseudolagotherium veracrucense), e uma família similar foi a dos pseudo-cabritos (Notocapridae), que substituem os pequenos antílopes e cabras do Velho Mundo, como os Pseudocabritos Notocaper haedoides e Notocaper cerviculus. A competição com os roedores dasiproctídeos decaiu muito o número de espécies.
ROEDORES CAVIOMORFOS
Os cavimorfos têm em Vera Crux os mesmos representantes do Nosso Mundo, tais como pacas, capivaras, cutias, ouriços-caixeiros, chinchilas, viscachas, preás, ratos-de-espinho. Sem a presença dos ratos, os ratos-de-espinho ocuparam todos os nichos possíveis, enquanto que capivaras enormes ocuparam o nicho das antas, com a grande Capivara-tapir (Hydrochoerops tapirinus) sendo uma dos maiores animais, ultrapassando os 300 kg de peso. As pacaranas-gigantes descendentes dos Foberomídeos do Mioceno ocuparam os nichos dos bois e rinocerontes, e atingiram tamanhos enormes durante o Plistoceno, mas sobreviveram na forma do Búfalo-do-Pantanal (Bubalomys paludicola), e das vacas-roedoras do Cerrado (Agoutibos vaccinus). A paca-gigante-andina (Mancotherium montanum) é menor e de pêlo-escuro. Formais mais ágeis se assemelham a alces e cervos, tais como o Pseudocervo (Elaphomys fulvus). As cotias-corredoras (Dromagouti anura) possuem pernas longas e são grandes velocistas, e os suassuranas (Myoprox cervicula) vivem nas florestas.
Os ouriços-caixeiros, Coendouidae (uma vez que no mundo de Vera Crux não existe o porco-espinho-norte-americano, Erethizon dorsatus, que dá nome à família Erethizontidae no NM) sem a competição de herbívoros mais avançados, evoluíram para enormes tamanhos, e desenvolveram couraças espinhosas com grandes espigas caudais e dorsais, de certa forma convergindo com os gliptodontes. As formas maiores extinguiram-se junto com a megafauna, mas um grupo de animais espinhosos do tamanho de porcos, e o queixada-espinhosa (Spinosus hystrichinus) espalha-se pelo Brasil inteiro. Outro grupo próximo, o dos mapinguaris, desenvolveu um estilo de vida semelhante ao das preguiças-gigantes, e deixou sobreviventes atuais, como o mapinguari-vermelho (Acanthotherium rufum), da Amazônia, e o mapinguari-de-cara-dourada, do Sudeste (Acanthotherium orientale). O mapinguari-do-Pantanal (Echinomegatherium paludinosum) é castanho-claro, e o mapinguari-do-Cerrado (E. albescens), esbranquiçado.
PRIMATAS
Os micos e saguis diversificaram-se como no nosso mundo, mas a evolução em Vera Crux permitiu a existência de algumas grandes formas terrícolas semelhantes a gorilas, tais como o Curupira (Hesperogorilla ateloides), e espécies muito pequenas que substituem os esquilos, como o micos-esquilos (Sciurocebus nanus, Nanocebus sciureus, Cebiscus microps).
AVES
As Forusraciformes carnívoras são as principais velocistas em Vera Crux, e são os predadores dominantes. O pássaro-g
uepardo (
Acinonychornis brasilis) é de um grupo de ágeis predadores, enquanto a corpulenta seriema-hiena (
Cariamaena ossifraga) alimenta-se de carniça. O pássaro-cachorro (
Cynalectryon pamparum) vive em matilhas. As falsas-avestruzes (
Pseudostruthio pantophagus) vivem em manadas, e assemelham-se às emas, sendo onívoras.
Os grandes urubus gigantes (
Teratornithidae) não se extinguiram, e desenvolveram algumas formas corredoras, como o
Geovultur giganteus. Um parente menor destes, o
Cynornis cadaverinus, vive nos campos de Roraima.
A ema possui parentes ainda maiores, como a
Altavis araucariae araucariae, que se alimenta de pinhões a mais de dois metros de altura e a
Altavis araucariae cisplattina, dos pampas.
Como as aves voam, sua capacidade em transpor grandes superfícies de água, aliada ao registro fóssil mu
ito fragmentário na América do Sul torna difícil identificar com clareza quais seriam os grupos de pássaros que migraram após o Grande Intercâmbio. Certos grupos tanto poderiam atravessar o Mar do Caribe como vir da África. Em Vera Crux, considero conceitualmente que a travessia pelo Caribe está impossibilitada. Grupos como os Trogoniformes, Coraciiformes, Aves Canoras mais modernas não conseguiram chegar ao Sul.
OFÍDIOSSem o Istmo do Panamá, várias famílias de serpentes jamais alcançaram a América do Sul, como os Elapídeos (corais) e os Crotalídeos (cascavéis e jararacas), não havendo cobras venenosas em Vera Crux. A boiaçu (
Eunectoboa monstruosa) é uma espécie de sucuri gigantesca e semiaquática. Com a ausências das cobras mais avançadas (Caenophidia),
seu papel na América do Sul foi preenchido pelos Aniliídeos, que possuem mais de cem espécies. Significa dizer que em Vera Crux não existem corais, verdadeiras ou falsas, cobras d'água, caninanas e nenhum espécie de cobra venenosa (jararacas, urutus, cascavéis e corais).
CROCODILIANOS
Os Crocodilos terrestres zifodontes carnívoros entraram em declínio, mas persistiram duas espécies sobreviventes: o teiurubu-açu (
Cathartosuchus sylvaticus), carniceiro da Amazônia, e o pequeno teirubuí
Thoosuchus guyanensis dos campos de Roraima.
CONSEQUÊNCIAS NO NORTE
Sem o intercâmbio, a América do Norte também não recebeu seus imigrantes do Sul, assim a composição da fauna das regiões tropicais da América do Norte, ou seja, México, península de Yucatan e os resquícios da América Central que existem neste universo alternativo não possuem macacos, tatus, capivaras, pacas, cutias, porcos-espinho, tamanduás e preguiças. Além disso, sem a América do Sul para se espalhar diversos grupo nórdicos, que se diversificaram no Sul e reinvadiram o Norte, não seriam tão variados. Grupos incluem os gatos-do-mato, o puma, a onça, os cachorros-do-mato, os cervídeos e porcos-do-mato, dentre outros. A única espécie remanescente de anta seria o tzemen, ou anta-americana (Acrocodia bairdii). Como neste universo não existem antas na América do Sul, o nome tapir não é aplicado às antas, mas aos roedores gigantes. Assim sendo, o nome genérico das antas no universo VC não é Tapirus, mas Acrocodia, e só existem duas espécies, a anta-americana, e a anta-malaia.
Acredita-se que tanto o puma como a onça em NM descendam de ancestrais nortistas que se espalharam pela América do Sul, e aí deram origem às espécies atuais. Na linha evolutiva de VL, os grandes felinos dos gêneros Puma e Panthera ficaram "encurralados" nas matas da América Central, e assim temos apenas o ocelotl (Leopardus pardalis), o remanescente mexicano da jaguatirica, e o tlatlauhquiocélotl (Panthera novaehispaniae), uma versão mais modesta da onça-pintada.
A ausência de macacos fez com que os esquilos atingisse uma grande diversificação evolutiva, gerando uma linhagem de grande tamanho nas matas de Yucatana. O Megalosciurus pithecoides é um esquilo de mais de 8kg de peso, e 55cm de comprimento. A única espécie de porco-selvagem existente é o porco-asteca, (Dicotyles labiatus), uma versão do cateto de NM. Os procionídeos também não puderam se diversificar no Sul, assim no universo de VC não existem guaxinins, juparás e quatis, apenas os cacomistles (Procyon astutus e P. sumichrasti), que contam com uma terceira espécie exclusiva do mundo de VC, o racum (Procyon lotor) que ocupa o nicho-ecológico do racum (guaxinim, Procyon lotor) do Nosso Mundo. Como a primeira espécie classificada foi este cacomistle-racum, o gênero acabou recebendo o mesmo nome de Procyon, embora não seja a mesma espécie de NM. Completam a família os olingos (Bassaricyon spp.) e seus parentes maiores, os olingos-macaco (Bassaripithex prehensilis), que também ocupam nichos ecológicos dos macacos frugívoros. Não existem camelídeos americanos na versão VC, já que lhamas e guanacos jamais evoluíram nas montanhas da América do Sul.
Outra característica das matas mexicanas é a ausência de papagaios, que são substituídos pelos trogoniformes.