Continuando as minhas divagações sobre Argos...
Algo que salta aos olhos quando vemos as genealogias dos reis argivos de uma perspectiva geral é a forma como uma série de tradições diversas foram "costuradas" em uma extensa árvore genealógica. O ramo descendente da princesa Io inclui personagens que extrapolam o contexto de Argos e de sua região, a Argólida:
- Agenor (Agênôr), rei da Síria, esposo de Telefassa (ou Argíope) , foi pai de Cadmo (Kadmos), Fênix (Phoinix), Cílix (Kilix), Taso (Thasos) e Europa (Eurôpa). Cadmo será o fundador mítico da cidade grega de Tebas, na Beócia; Fênix é o epônimo da Fenícia; Cílix da Cilícia; Taso da ilha de Tasos; Europa foi raptada por Zeus em forma taurina e tornou-se a mãe do grande rei cretense Minos.
- Belo (Bêlos), rei do Egito, e pai de Dânao e Egito, e seu nome remete-nos ao deus semítico *Ba`lu (babilônio Bel, cananeu Baal).
A ligação da genealogia argiva com povos estrangeiros parece obviamente ser um acréscimo posterior, um "apêndice" incorporado às tradições locais para explicar uma série de povos vizinhos. Da mesma forma, a lenda de Io, foi progressivamente remodelada para explicar uma série de eventos: o nome do Mar Jônico; o nome do Estreito de Bósforo (em grego Bôsporos, "passagem da vaca"); e até o culto egípcio à deusa-vaca, na forma de Ísis (então confundida pelos helênicos com a "genuína" deusa-vaca Hátor). Tratam-se de etimologias populares, formuladas a partir de semelhanças fortuitas entre nomes. As tradições vinculam Argos ao Egito podem ter uma base real, e isto vem sendo estudado por autores como Martin Bernal, autor de Black Athena. Neste livro ele defende a tese de que a cultura grega tem raízes afro-asiáticas, especialmente na Fenícia e no Egito, o que seria confirmado pelos mitos de fundação de diversas cidades helênicas, como Tebas, Argos e até Atenas. Embora suas teses sejam polêmicas, e tenha sofrido muitas contestações, o livro levanta alguns questionamentos interessantes. É sabido por exemplo que Io, no dialeto argivo (iô), significava "lua", muito similar à palavra egípcia para lua, yah. Esta palavra pode também estar na raiz do nome Íaso (Iasos). Mesmo que as raízes egípcias de Argos venham a ser confirmadas, a inclusão de tantos povos vizinhos numa genealogia local parece ser um acréscimo posterior.
Teríamos assim uma genealogia "original", que vai do patriarca Foroneu até o rei destronado Gelanor. A partir daí o que temos é uma "costura" que incorpora elementos egípcios, asiáticos e beócios à genealogia argiva. Existiam tradições locais beócias divergentes sobre a origem do herói Cadmo, nas quais ele era filho do herói tebano autóctone Ógigo (Ôgygos); Cílix, Fênix e Taso são personagens "vazios", dos quais nenhuma lenda particular existe, constando apenas como irmãos que ajudam seu pai a buscar pela irmã raptada; aparecem para explicar uma série de países vizinhos, assim como as colônias fenícias na ilha de Tasos. Belo pode ser uma helenização do Bel mesopotâmico e do Baal fenício (provavelmente), e Egito é apenas mais um epônimo (epônimo é um personagem que dá nome a um lugar).
A lenda original das Danaides parece falar de um grupo de mulheres vindas do mar para morrer em Argos. Acredito que elas fossem inicialmente uma raça de seres míticos, como as Sereias, Nereidas e Amazonas. Escrevi sobre isso na minha primeira postagem sobre A Origem das Amazonas. Mulheres aquáticas e ferozes, que invadiram a terra e foram derrotadas, talvez seu nome original fosse Danaides, e o nome Dânao tenha sido "fabricado" para dotá-las de um pai humano. No entanto, dânaos é um nome étnico, que designa um povo grego, e é visto como muitos como relacionado ao misterioso povo dos Deneen que invadiu o Egito com as hordas dos Povos do Mar, em 1 200 a.C. Outras possibilidade vinculam este nome ao indo-europeu *Danu-, "água, rio, deusa-rio", e até mesmo à tribo israelita de Dan. A mesma raiz aparece no nome da princesa Danae, mãe de Perseu. A proto-forma dos nomes era *DanaFos e *DanaFâ, onde o "F" é um digamma, uma letra grega equivalente ao sol de "w", e que foi suprimido do alfabeto na maioria dos dialetos clássicos. Danaides foram mortas por Linceu (esposo da única sobrevivente, Hipermnestra) e sofrem no Tártaro por terem assassinado os maridos, sendo obrigadas a eternamente encher um ânfora de água usando peneiras.
Ou seja, as primeiras gerações da casa real argiva terminam com a invasão de uma raça mítica de mulheres aquáticas, que são "derrotadas" e "domadas", de forma a legitimar uma série de tradições patriarcais. Quem seria este Linceu? O nome grego, Lygkeus, é tradicionalmente vinculado à palavra lygx, "lince", mas não deve passar de uma etimologia popular. Será que Linceu está vinculado a outros nomes como Licaon, Locro, Lico ou Licoreu? Linceu é também o nome de um dos gêmeos semidivinos da cidade vizinha de Messene, sexto-neto do primeiro, indicando que o nome era recorrente na linhagem.
Com Linceu, temos assim a segunda "fase" das genealogias argivas, com uma sucessão de nomes que faz a ponte para o próximo grande evento do clã argivo: o mito de Perseu, com seu avô Acrísio e sua mãe Dânae. Após Perseu, seguem-se mais uma série de nomes até a figura de Héracles, cujos descendentes, os Heráclidas, foram expulsos da região, e voltariam mais tarde para tomar o poder.
Como explicar estas "costuras"? Seriam diferentes estratos sobrepostos, talvez representando diferentes correntes colonizadoras da região? Os argivos falavam um dialeto dório, correspondendo à última das migrações que povoaram a Grécia. Os dórios sobrepuseram-se a um dialeto anterior possivelmente aparentado ao arcadiano. Tradicionalmente a camada mítica que representa a invasão dória é considerada como sendo a dos Heráclidas, uma série de mitos fundadores que contam estes invadiram o Peloponeso e e vingaram-se dos seus inimigos.
Termino esta postagem com o resumo da divisão que proponho para a dinastia argiva:
Teríamos assim uma genealogia "original", que vai do patriarca Foroneu até o rei destronado Gelanor. A partir daí o que temos é uma "costura" que incorpora elementos egípcios, asiáticos e beócios à genealogia argiva. Existiam tradições locais beócias divergentes sobre a origem do herói Cadmo, nas quais ele era filho do herói tebano autóctone Ógigo (Ôgygos); Cílix, Fênix e Taso são personagens "vazios", dos quais nenhuma lenda particular existe, constando apenas como irmãos que ajudam seu pai a buscar pela irmã raptada; aparecem para explicar uma série de países vizinhos, assim como as colônias fenícias na ilha de Tasos. Belo pode ser uma helenização do Bel mesopotâmico e do Baal fenício (provavelmente), e Egito é apenas mais um epônimo (epônimo é um personagem que dá nome a um lugar).
A lenda original das Danaides parece falar de um grupo de mulheres vindas do mar para morrer em Argos. Acredito que elas fossem inicialmente uma raça de seres míticos, como as Sereias, Nereidas e Amazonas. Escrevi sobre isso na minha primeira postagem sobre A Origem das Amazonas. Mulheres aquáticas e ferozes, que invadiram a terra e foram derrotadas, talvez seu nome original fosse Danaides, e o nome Dânao tenha sido "fabricado" para dotá-las de um pai humano. No entanto, dânaos é um nome étnico, que designa um povo grego, e é visto como muitos como relacionado ao misterioso povo dos Deneen que invadiu o Egito com as hordas dos Povos do Mar, em 1 200 a.C. Outras possibilidade vinculam este nome ao indo-europeu *Danu-, "água, rio, deusa-rio", e até mesmo à tribo israelita de Dan. A mesma raiz aparece no nome da princesa Danae, mãe de Perseu. A proto-forma dos nomes era *DanaFos e *DanaFâ, onde o "F" é um digamma, uma letra grega equivalente ao sol de "w", e que foi suprimido do alfabeto na maioria dos dialetos clássicos. Danaides foram mortas por Linceu (esposo da única sobrevivente, Hipermnestra) e sofrem no Tártaro por terem assassinado os maridos, sendo obrigadas a eternamente encher um ânfora de água usando peneiras.
Ou seja, as primeiras gerações da casa real argiva terminam com a invasão de uma raça mítica de mulheres aquáticas, que são "derrotadas" e "domadas", de forma a legitimar uma série de tradições patriarcais. Quem seria este Linceu? O nome grego, Lygkeus, é tradicionalmente vinculado à palavra lygx, "lince", mas não deve passar de uma etimologia popular. Será que Linceu está vinculado a outros nomes como Licaon, Locro, Lico ou Licoreu? Linceu é também o nome de um dos gêmeos semidivinos da cidade vizinha de Messene, sexto-neto do primeiro, indicando que o nome era recorrente na linhagem.
Com Linceu, temos assim a segunda "fase" das genealogias argivas, com uma sucessão de nomes que faz a ponte para o próximo grande evento do clã argivo: o mito de Perseu, com seu avô Acrísio e sua mãe Dânae. Após Perseu, seguem-se mais uma série de nomes até a figura de Héracles, cujos descendentes, os Heráclidas, foram expulsos da região, e voltariam mais tarde para tomar o poder.
Como explicar estas "costuras"? Seriam diferentes estratos sobrepostos, talvez representando diferentes correntes colonizadoras da região? Os argivos falavam um dialeto dório, correspondendo à última das migrações que povoaram a Grécia. Os dórios sobrepuseram-se a um dialeto anterior possivelmente aparentado ao arcadiano. Tradicionalmente a camada mítica que representa a invasão dória é considerada como sendo a dos Heráclidas, uma série de mitos fundadores que contam estes invadiram o Peloponeso e e vingaram-se dos seus inimigos.
Termino esta postagem com o resumo da divisão que proponho para a dinastia argiva:
- Primeira fase: Foroneu até Gelanor
- Segunda fase: Danaides até Abas
- Terceira fase: Acrísio até Perseu
- Quarta fase: Perseu até Héracles
- Quinta fase: Heráclidas
2 comentários:
Será do indo-europeu *Danu- que se origina o nome do rio europeu Danúbio?
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